#TBO Crepúsculo: a criação do romance trash

Reprodução/ Paris Filmes
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Filmes e séries fazem parte de nossas vidas e, muitas vezes, têm uma parcela de inspiração na formação do caráter de cada um. Existem filmes que assistimos uma única vez e jamais esquecemos, outros a gente revisita centenas de vezes e nunca é suficiente. Há também aqueles filmes que a gente conseguiu se conectar em um período da vida, mas passados alguns anos, já não consegue identificar o que atraiu sua atenção. Sempre existe uma dúvida: será que aquele filme era bom (ou ruim) mesmo ou trata-se da memória afetiva?

Aproveitando a quarentena e a escassez de lançamentos, o Cebola Verde vai convidar nossos cebolitos à dar uma segunda chance para filmes e séries que estrearam em uma época diferente, quando as pessoas ainda se abraçavam e mostravam seus sorrisos na rua. Toda a quinta-feira, este site vai postar pelo menos uma crítica em formato de #TBT, ou melhor, #TBO (#ThrowbackOnion). A audiência terá papel importante neste quadro, pois vocês, cebolitos, irão poder sugerir algum filme ou série que querem ver aqui. O critério para entrar no #TBO é a série ou o filme ter sido lançado antes de 2020 e não ter críticas da obra neste site.

Um marco no cinema adolescente

Ah os anos 2000… Década controversa, cheia de altos e baixos, mas, inegavelmente, foi um momento de suma importância para o mundo geek. Foram nos primeiros dez anos do século XXI que observamos grandes franquias na literatura serem adaptadas para o cinema. Demos nosso primeiro passeio na Terra Média, vimos o bruxinho mais famoso do Reino Unido ganhar as telonas e, apesar de não contar com o mesmo prestígio, conhecemos uns vampiros um tanto quanto polêmicos. Goste ou não, “Crepúsculo” dominou o final dos anos 2000 e o início da década seguinte. A febre dos vampiros cintilantes tomou rumos inimagináveis para a escritora americana Stephenie Meyer.

E é com essa obra que, mesmo após 12 anos de seu lançamento ainda gera debate, iremos iniciar o #TBO.

Reprodução/ Paris Filmes
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Crepúsculo é um filme estadunidense da Summit Entertainment lançado em 2008 e adapta a obra literária homônima lançado três anos antes. A trama conta a história da adolescente, Bella Swan, que se apaixona sem nenhum motivo aparente pelo centenário vampiro, Edward Cullen, que admite várias vezes ter vontade de matá-la. Mas apesar desta descrição, este texto tem como missão fazer justiça à Crepúsculo que pode ter sido interpretada de forma equivocada, inclusive por esta que vos fala.

Ao rever o longa estrelado por Robert Pattinson e Kristen Stewart, percebi que ao invés de um romance medíocre, Crepúsculo na verdade é uma comédia sarcástica. Involuntário ou não, o humor é sem dúvidas presença frequente durante todo o filme.

Comédia romântica ou romance trash?

A veia cômica em Crepúsculo dá as caras desde o primeiro contato entre Bella e Edward. Afinal, como não se contagiar com a entrada em câmera lenta de Bella na aula de biologia, seguida pelo olhar de nojo de Edward e a famigerada tampada de nariz. Ainda nesta cena, a mocinha age de forma totalmente oposta a que se espera de qualquer ser humano preocupado com o aroma em seu corpo: ela não desconfia do cecê, chulé, mau hálito… Ao invés disso, ela checa o aroma de seu cabelo.

Um momento sublime e talvez pouco apreciado é a primeira visita de Bella à mansão dos Cullen. É de se imaginar que com um telepata e uma vidente na família, os vampiros saberiam que a namorada humana de Edward já tinha almoçado, certo? Errado! Os vampiros estrearam a cozinha em vão e, aparentemente, é um crime terrível ter a noção de se alimentar antes de visitar a família de seu namorado que tem uma dieta muito diferente da tua. Bom, este foi o estopim para que Rosalie (“irmã” de Edward) se enfureça e jogue na cara de Bella que o relacionamento dela com seu irmão poderia colocá-los em perigo. Esse é só mais um dos momentos de “sutileza” do roteiro recheado de diálogos expositivos.

Reprodução/ Paris Filmes
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Outra cena que tenta mostrar romance, mas acaba arrancando risadas é o primeiro beijo entre o casal protagonista. Edward entra no quarto da mocinha e casualmente revela que faz isso toda noite, quando a observa dormir (vou comentar sobre daqui a pouco). Logo em seguida ele a beija com a expressão de alguém que estaria lambendo a sola do sapato de um atleta que disputou uma maratona em um aterro sanitário. Essas simples interações entre os protagonistas apontam para a criação de uma nova categoria: o romance trash. Os diálogos, expressões e ações do casal trazem desconforto, e, não são raros os momentos vergonha alheia para quem assiste.

Combinação explosiva

Além de um roteiro mais furado que queijo suíço, o filme tem outras características marcantes. Desde a paleta de cores em tons frios, puxado para o verde e azul (A Forma da Água parece ter bebido desta fonte), passando pelas atuações afetadas ou inexpressivas, o uso exacerbado de câmera lenta (capaz de fazer os fãs do Zack Snyder arrepiarem). Apesar disso, o filme ganha quando o assunto é a trilha sonora.

Com nomes como Paramore, Linkin Park, Muse, Radiohead, Claude Debussy e até o próprio Robert Pattinson, a trilha de Crepúsculo conseguiu até descolar uma indicação ao Grammy na categoria Melhor Compilação de Trilha Sonora para Mídia Visual. Mas além dos hits gerados, a trilha também tem papel importante na narrativa, chamando atenção e tentando guiar o público para uma atmosfera jamais alcançada pelo roteiro.

Romantização do abuso

Apesar do humor involuntário e do grau de diversão que a obra pode causar, em certos momentos, a história assume um tom assustador, mas não da forma esperada. Uma das críticas mais famosas e recorrentes em relação aos vampiros de Crepúsculo está na pele brilhante. No entanto, este é um dos menores problemas nas características destes personagens. A verdadeira problemática que o longa traz está na forma com que é conduzido o relacionamento do casal protagonista.

Edward se mostra como alguém que julga saber o que é melhor para Bella, mais do que ela própria. Nenhuma vez as vontades ou opiniões dela são verdadeiramente levadas à sério (e isso é uma problema que se repete em todos os filmes e livros da saga). O vampiro tem comportamentos que fazem o Joe Goldberg (You) parecer um santo.

Ele a persegue em todos os cantos, não respeita nem a sua privacidade (ele a espiona até durante o sono). Pior do que as ações é a romatização delas. Ele justifica ser um stalker porque “não consegue ficar longe dela” e o roteiro contribui com a ideia de tornar a perseguição dele necessária. Um exemplo do malabarismo feito para justificar o injustificável está na fatídica cena em Port Angeles.

Reprodução/ Paris Filmes
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Ao sair de uma livraria, Bella é cercada por rapazes, aparentemente bêbados, e tudo leva a crer que ela seria estuprada e possivelmente morta pelo grupo. No entanto, o “herói” Edward aparece em cima da hora para salvar a donzela. Ao assistir essa cena, o público é guiado a acreditar que a garota realmente precisa do vampiro como uma sombra. Isso sem contar no simbolismo barato que a direção apela a colocar o vampiro como uma imagem angelical. Inclusive em uma cena, as asas de uma coruja empalhada parecem ser dele, como se ele fosse um anjo. Além disso, ele impõe à Bella a ida ao baile da escola. Evento este, que a garota desde o início demonstra total desinteresse para dizer o mínimo.

Protagonista coadjuvante

Voltando a falar da Bella, afinal, é ela a protagonista do filme e é de se esperar que ela tenha motivações e pelo menos o mínimo de desenvolvimento de personalidade possível. No entanto, dentre suas características, destaca-se: palidez, insegurança e falta de autoestima. Falta personalidade para Bella até se dar conta de onde está se metendo ao se relacionar com um vampiro. Não é de se espantar que a Kristen Stewart tenha sido acusada de inexpressiva, mas o que expressar em um personagem unidimensional?

Sobre as motivações, Bella se muda para Forks porque sua mãe casou-se novamente e, depois disso, ela vive unicamente com o intuito de ficar para sempre com um cara que ela acabou de conhecer. Mesmo com relação ao relacionamento, ela sente o tempo todo ser inferior ao Edward.

Reprodução/ Paris Filmes
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O único feito de Bella em 2h06 de filme é saber a raiz quadrada de π. Até mesmo quando enfrenta o vilão, o filme faz questão de lembrar que ela é apenas uma coadjuvante e que o alvo do vampiro é unicamente Edward. Não é de se estranhar que a autora Stephenie Meyer tenha anunciado para agosto o livro Midnight Sun que reconta a história pela perspectiva de Edward e tornando assim, a protagonista mais coadjuvante da história do cinema no que sempre foi seu papel na trama: a motivação para um vampiro amargurado justificar suas falhas de caráter.

Crepúsculo foi lançado em uma época em que mulheres eram desencorajadas a ter papel de destaque independente de algum homem e reflete a problemática em sua narrativa. Apesar de divertir, o filme que já tinha opiniões divergentes na época de seu lançamento, não envelheceu nada bem. Rever Crepúsculo é como olhar para uma foto antiga e perceber que algumas modas não cabem mais nos dias atuais. A obra mina qualquer tentativa de empoderamento da protagonista. Em uma safra que contou com personagens como Katniss Everdeen (Jogos Vorazes) e Annabeth Chase (Percy Jackson), tanto na literatura infanto-juvenil como nas telonas, Bella é possivelmente uma das piores protagonistas.