Cinema de quadrinhos e a liberdade criativa dos diretores

O preço das interferências de estúdios no gênero de cinema mais popular da atualidade

Foto: Divulgação/Warner
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O cinema trata-se de uma de expressão, mas e quando a voz do idealizador é censurada? Filmes inspirados em quadrinhos nos últimos anos figuraram no topo das bilheterias. Prova disso foram os sucessos de “Vingadores Ultimato” (2019) e “Coringa” (2019), mas nem sempre foi assim. Para conseguir o espaço ‒ embora ainda enfrente resistência de alguns ‒ foi necessário um longo caminho, mas isso também representa uma carência de filmes com assinaturas acentuadas dos diretores. Não é raro ouvir que os filmes de heróis seguem uma fórmula ou pedidos para liberação da versão do diretor em longas que contaram com a intervenção do estúdio.

#ReleaseTheSnyderCut

Talvez o caso recente mais emblemático envolvendo mudanças na visão original de um filme seja a versão de “Liga da Justiça” (2017). O longa originalmente contava com a direção de Zack Snyder, porém, após uma tragédia pessoal, além das diferenças criativas entre a Warner/DC e ele, foi afastado da obra. Em seu lugar entrou Joss Whedon. A diferença de visão entre os dois cineastas era latente desde os trailers e quando o filme chegou às telonas foi uma decepção.

O filme se tornou um Frankenstein com fragmentos da visão de Snyder e Whedon, mas ao mesmo tempo com nenhuma. Inconformados, os fãs iniciaram a campanha #ReleaseTheSnyderCut que contou com o apoio do diretor. Petições foram criadas, mas muitos duvidavam que a Warner daria o braço a torcer. Até que em maio foi anunciado que o Snyder Cut seria liberado no ano que vem em formato de minissérie.

Foto: Divulgação/Warner
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É de se analisar que uma das motivações para a mudança de ideia do estúdio provavelmente tem a ver com a dificuldade na produção de obras na pandemia. Os estúdios tiveram de rever os calendários de estreias e até agora poucas produções tiveram as filmagens retomadas. Portanto, usar um material que teoricamente precisa de poucas mudanças para ser disponibilizado e conta com apelo popular foi uma solução escolhida pela Warner para suprir a demanda.

Incentivo?

Embalados pelo sucesso da campanha, outros cortes de diretores da DC começaram a ser reivindicados. O primeiro foi a versão de David Ayer de “Esquadrão Suicida” (2016). Nascia assim a campanha ‒ embora tímida ‒ #ReleaseTheAyerCut. O filme foi um fiasco em seu lançamento, mas, apesar disso, Ayer assinalou na época que aquela era a sua versão para o longa. No entanto, após o anúncio do Snyder Cut, o diretor mudou o discurso e passou a fazer revelações dos enredos que ele chegou a filmar, principalmente envolvendo o Coringa e a Alerquina. Porém, até o momento, o “Ayer Cut” parece estar longe dos planos da DC e até mesmo os fãs têm ideias divergentes sobre o corte.

Recentemente, foi revelado que outro filme de quadrinhos também contava com um corte do diretor: “Batman Eternamente” (1995). O assunto surgiu pouco depois da morte do diretor da película, Joel Schumacher, e pegou muita gente de surpresa. Segundo rumores, a versão do diretor conta com 170 minutos de duração e seria mais sombria do que o corte que ganhou as telonas. Como o filme completa 25 anos em 2020, alguns fãs iniciaram a campanha #ReleaseTheSchumacherCut. Porém, sem a curadoria de Schumacher, essa provavelmente a versão mais difícil de ganhar vida.

Foto: Reprodução/Warner Bros.
Foto: Reprodução/Warner Bros.

Confira nosso TBO de “Batman & Robin”.

Fórmula Marvel

Se na DC os fãs clamam pelas versões dos diretores, na concorrência a história é outra. Para trabalhar na Marvel/Disney os diretores precisam se adaptar à “Fórmula Marvel” ou são demitidos. Todos os filmes do MCU precisam seguir a mesma estrutura que tem funcionado há 12 anos. Mesmo produções mais sérias como “Capitão América – O Soldado Invernal” (2014) ou “Pantera Negra” (2018) contam com essa fórmula. Como resultado, os diretores aceitam previamente como o filme tem de ser e consequentemente a versão dos cinemas sempre será a visão do estúdio com participação do diretor.

Edgar Wright, por exemplo, trabalhou por oito anos no filme “Homem-Formiga” (2015) e, ao fim, teve de abandonar o projeto por diferenças criativas com o estúdio. Em seu lugar quem assumiu a direção foi Peyton Reed. Wright chegou a afirmar que, embora ele quisesse fazer um filme da Marvel, a Marvel não queria fazer um filme dele.

Foto: Reprodução/Disney
Foto: Reprodução/Disney

Patty Jenkins também já trabalhou e se demitiu de um filme da Marvel. A diretora de “Mulher-Maravilha” (2017) e “Mulher-Maravilha 1984” (com estreia prevista para outubro) chegou a se envolver na pré-produção de “Thor: O Mundo Sombrio” (2013), mas desistiu de comandar o longa por não acreditar que seria possível fazer um “bom filme” com o roteiro. Na época, sua saída foi repercutida e a relação da Marvel com a atriz Natalie Portman ficou abalada. Jenkins temia que, se continuasse no projeto, pudesse atrapalhar o caminho para que outras mulheres comandassem filmes do gênero.

Em outro estúdio, mas ainda na Marvel ‒ dessa vez na Fox ‒, o filme “Quarteto Fantástico” (2015) foi outro que sofreu com interferência do estúdio. Josh Trank travou uma guerra com a Fox, o roteirista e os produtores do longa. Quando o estúdio bateu o martelo e decidiu que o filme precisava ser mais leve, o editor Stephen Rivkin foi contratado e os produtores Simon Kinberg e Hutch Parker passaram a supervisionar tudo. Na época do lançamento, Trank postou em uma rede social que ele tinha uma versão fantástica, mas o público jamais a veria. Fato é que o filme foi um fracasso de crítica e público. Os fãs da primeira família da Marvel preferem esquecer que a obra existe.

Foto: Divulgação/20th Century Studios
Foto: Divulgação/20th Century Studios

Autoria

Mas há casos modernos de sucesso em que o estúdio dá liberdade criativa aos diretores e é recompensado. Como o “Coringa”, de Todd Phillips, a trilogia do Batman dirigida por Christopher Nolan, “Guardiões da Galáxia vol. 1 e 2” (2014 e 2017) de James Gunn ‒ embora estejam na fórmula Marvel ‒, “Logan” (2017) de James Mangold. Isso aliado às campanhas para os cortes dos diretores são provas de que o público quer ver a visão deles das obras. Cabe aos estúdios atender ou lidar com as críticas.

Foto: Reprodução/Warner
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